"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas...Continuarei a escrever" - Clarisse Lispector

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

As ruínas




As ruínas



Abriu os olhos.

Tudo à sua volta era escuro, iluminado apenas por uma luz avermelhada do lampião que ela tinha em mãos.

Observava a paisagem, intrigada. Estava numa mansão em ruínas, era o que parecia. À sua frente havia uma escadaria, forrada com um tapete vermelho. Ao chegar mais perto, percebeu que este estava úmido e repleto de musgo, furado por traças e desgastado pelos caprichos do tempo.

Encostou-se no corrimão, mapeando todo o lugar com os olhos. Onde estava? Por que estava ali? Como chegara lá? Quem era ela? Estas perguntas sem resposta aparente desabrochavam na cabeça da menina.

Estava escuro demais... Deveria ser noite. Nem noção do tempo ela tinha direito. Tentou apelar para seus sentidos. A visão não lhe ajudaria muito, já que tudo estava envolvido numa penumbra inconstante, que tremeluzia com a frágil luz do fogo.

Fechou os olhos para sentir os cheiros. Madeira velha, mofo e umidade, muita umidade. Se concentrando, pôde ouvir o som do vento que passava pelas paredes velhas e danificadas, cheias de fendas. Também havia o som de água corrente, pingando devagar, constante.

Abriu os olhos novamente. Não adiantaria nada ficar lá parada, esperando algo acontecer, alguma resposta surgir. Decidiu explorar a casa. Primeiramente subiu a escada, seus passos abafados pelo tapete velho. Uma fina linha de luz começou a despontar numa das janelas ― estava amanhecendo. Satisfeita com a luz e o carinho do calor do Sol em seu rosto, ela apagou o fogo num sopro só. Não precisaria mais daquela iluminação macabra.

Já no andar de cima, ela caminhou calmamente pelos longos corredores da mansão. Havia portas e mais portas, quartos e mais quartos, e quadros enfeitando as paredes antigas. Muitos deles com imagens desgastadas e feridas, talvez pelo abandono da casa, ou talvez por terem sido apreciados por tempo demais pelos antigos moradores.

Ela parava em alguns desses quadros, principalmente nos retratos. Eles lhe davam uma sensação estranha, que ela não conseguia decifrar. A menina não sabia, mas o que sentia era uma espécie de dejavu; como se já tivesse visto tudo aquilo antes, mas muito, muito tempo atrás.

Incomodada com isso, voltou a andar, agora inquieta. Não queria mais olhar os quadros, eles a estavam apavorando. Abriu a primeira porta que viu, e ficou estacionada olhando para o quarto.

As suas quatro faces eram cobertas por um papel de parece cor de rosa, com laços espalhados, dando um ar gracioso ao ambiente apesar dos desenhos já estarem gastos. Num dos cantos havia uma estante embolorada, que provavelmente já fora branca, com uma boneca de pano repousando sobre ela. Ao lado, um espelho em forma de coração pregado na parede.

No outro canto, uma cama desarrumada, os lençóis todos sujos, pois parte do telhado se quebrara e agora deixava entrar a chuva, que ia aos poucos desbotando os detalhes daquele quarto de menina.

Inopinadamente, sentiu dificuldades para respirar. Algo naquele lugar a apavorava, dava calafrios. Sentiu tontura e dor de cabeça, mas isso não era o pior. Um desespero profundo foi tomando conta dela, preenchendo-a, torturando-a. Apoderava-se da menina como uma sombra traiçoeira, e aos poucos começava a se enrolar em seu pescoço, tentando estrangulá-la.

Alucinada para fugir daquela sensação angustiante, deu um passo para trás. E foi apenas pisar fora do quarto, para que tudo desaparecesse. A dor, o medo, o sufoco, tudo sumiu repentinamente, como se não tivesse passado de um sonho, ou de uma brincadeira de alguma fada travessa.

Ela devorou uma golfada de ar, sentindo o alivio voltar aos pulmões. Respirou fundo, tentando controlar a tremedeira. Tinha que se afastar daquele quarto, o mais rápido possível.

Caminhou com pressa na direção contraria dele, percorrendo todo o longo corredor, até chegar numa porta no final dele. Estava velha, como tudo naquele lugar. Provavelmente fora muito bonita anos atrás, a menina pôde constatar, graças aos detalhes esculpidos ao longo dela. Porém, agora estava arranhada e apodrecida.

A jovem abriu a porta, curiosa para saber o que havia lá dentro, e também ansiosa para se afastar mais do quarto pavoroso.

Era uma biblioteca. Lá estava mais claro, pois havia enormes janelas fornecendo luz para leitura. Todas elas estavam destruídas, os vidros estilhaçados; e agora árvores retorcidas adentravam no aposento, escalavam as estantes, enraizavam-se no piso antigo e em todas as brechas que encontravam, e já floresciam, tímidas, dando uma beleza rara ao lugar.

Havia poças por todo lado. Por que tanta água naquele lugar? – essa era uma pergunta mais fácil de ser respondida. O telhado já não era mais o mesmo, estava esburacado e acabado.

A garota não sabia dizer se estava frio ou quente. Levou o dedo até a boca, e sentiu os lábios trincados, mas também não sentia dor. Começou a se incomodar com aquilo.

Decidiu explorar a biblioteca. Agora já havia amanhecido, e os raios entravam alegres pelas amplas janelas, enchendo todo o lugar com luz. Os grãos de poeira podiam ser vistos dançando no ar, quando eram atravessados pelos raios, e pareciam comemorar a chegada de mais uma manhã.

Passou por entre as poças sem espalhar água ou ver seu reflexo, e parou em frente a uma estante. Havia livros e mais livros, todos danificados e provavelmente ilegíveis. Ela não tirou nenhum do lugar, esforçou-se em observar as raízes que furavam as prateleiras de madeira.

As árvores realmente cresceram por todo canto aqui, pensou a menina. Galhos e folhas começavam a formar portais sobre os corredores de mais e mais obras literárias. Os troncos e raízes não pouparam um buraco sequer, enroscavam-se preguiçosos nas estantes, roubavam o lugar dos livros, e apoiavam-se nas paredes, procurando uma fácil sustentação para crescerem e jogarem seus galhos curiosos sobre todo o ambiente.

E suas flores! Era a primeira coisa bela que a jovem via naquelas ruínas. Azuis, todas charmosas, com canudinhos de ponta amarela saindo do meio das pétalas aveludadas. Pareciam brilhar com a luz matinal, pareciam sorrir para a menina.

Ela percorreu os corredores, lendo aqui e acolá o título de algum livro, todos muito antigos. Passou por romances, odisséias, tragédias, aventuras, estudos, teses, ensaios teatrais e muitos outros. Por algum motivo também incerto, a biblioteca lhe dava uma sensação agradável.

No entanto, ela chegou ao ultimo corredor, no último livro. Nada mais havia para explorar. Somente uma porta no extremo daquela biblioteca, tão desgastada quanto todo o resto ali.

A menina abriu-a, curiosa para o que estava por vir, mas também temerosa. Muita luz e calor inundaram o ambiente, a porta escancarada dava para o lado de fora da mansão, mais especificamente para uma escada em caracol que terminavam num jardim.

Ela desceu devagar, observando os detalhes da escada em espiral, toda de mármore branco; jazia impecável, sem um risco sequer, porém também já sendo coberta por trepadeiras como os armários da biblioteca. Devia ter sido linda há tempos atrás, como todo o resto daquela mansão. Em todos os cantos a menina encontrava mais e mais traços de luxo.

O jardim era composto de colunas formando um círculo, e no centro provavelmente flores bem cuidadas. No entanto a jovem não podia distinguir o que outrora fora plantado ali, pois o mato já havia tomado conta de tudo.

Caminhou pelo jardim com uma sensação nostálgica. De repente, parecia ouvir um riso de criança rodeando-a, ver o sorriso de pais orgulhosos, sentir a alegria que há muitos anos atrás preencheu aquele jardim. Em alguns canteiros destruídos, para seu assombro, teve a ligeira sensação que sabia que flores havia ali antigamente. Rosas, margaridas, cravos, dentes de leão...

Recuou dos canteiros, para sentir novamente um calafrio percorrer sua espinha, para a alegria do jardim desaparecer. Girando o pescoço, viu. Atrás dela havia outra entrada para a casa, uma porta entreaberta, que parecia gritar seu nome, gritar para ela entrar. Seu nome? Nem isso sequer ela sabia, mas a porta sussurrava algo, algo que parecia ser seu nome. A porta tragava-a com uma aparente gravidade própria, devorava o espírito da menina.

Ela adentrou. Aquele corredor parecia mais preservado do que os outros, não havia água ali. A jovem correu, tomada de um ímpeto aflito, passando veloz pelo piso antigo sem levantar a poeira que se acumulava. Precisava chegar à outra porta entreaberta no fim do corredor, não sabia exatamente por quê. Sua cabeça doía, seus olhos se apertavam nas órbitas, a nostalgia dessa vez acompanhada por medo retornava.

Pisou no lugar, prendendo a respiração.

Era uma sala, com duas grandes poltronas para leitura, e uma mesinha entre elas. Havia um livro caído e aberto no chão.

A cabeça da jovem pareceu explodir de dor. Estarrecida, percebeu que não sentia mais seus pés, nem suas mãos, nem braços e pernas, nem nada, apenas a dor lacerante que cortava sua têmpora e embaçava seus olhos. Ouviu novamente o riso de uma criança, pôde vê-la correndo pelo lugar, rindo, enquanto os pais liam uma história sentados nas poltronas. As imagens pareciam sombras desfocadas.

A sala em seu auge e a sala destruída se sobrepunham e se misturaram. Na madeira velha, nas poltronas encardidas, haviam manchas escuras e oxidadas, respingos por todos os lados, maculando o que antes fora um lugar agradável. As manchas envelhecidas tomaram cores, voltando ao passado, de vermelho feroz e vivo.

Ela viu um homem adentrando na sala. Uma mulher gritando. Um homem correndo para tentar defendê-la, e uma criança se agachando horrorizada num dos cantos da sala. O sangue escorreu; primeiro do pai, que num movimento brusco de resistência derrubou um livro no chão; segundo da mãe, que ainda gritava, e cambaleou sobre a poltrona, manchando-a. Então o homem se dirigiu a criança, de olhos verdes arregalados, com uma lâmina faiscando... Uma última mácula de sangue fez-se, silenciando o lugar.

A jovem estava novamente na sala destruída, com manchas escuras do passado. Abriu os olhos verdes; era uma sombra, como todas as outras daquele lugar. A dor aos poucos diminuía, aos poucos falecia, e sua imagem esfarelava-se diante das lembranças. Recobrando-se de tudo, sentiu que precisava desaparecer. Agachou-se no mesmo canto que antes estivera a criança, sorriu.

Uma sombra, não mais que uma sombra, habitava naquelas ruínas.

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