"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas...Continuarei a escrever" - Clarisse Lispector

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O ouro agrada aos corvos




A luz alaranjada do entardecer tingia os tons de cobre da floresta. Ainda a pouco chovera, uma garoa fina e gelada, e as folhas estavam cobertas por gotículas brilhantes. O ar cheirava a orvalho, terra e decomposição.

Seus passos amassavam as folhas que se entregavam ao outono, produzindo um leve ressoar. Uma moeda de ouro girava em seus dedos, passando do indicador para o médio, de volta ao polegar, e às vezes jogada para cima para logo depois ser recuperada pela mão longa. Ele nunca a deixava cair.

O vento balançou seus longos cachos castanhos, e um arrepio percorreu-lhe a nuca. Percebeu que havia algo errado, e levou automaticamente a mão à adaga presa à cintura. Era uma arma extraordinária; cabo de madeira com entalhes tribais, lâmina fina e esguia, prateada, afiada e letal em ambos os lados. Sempre o protegera quando fora necessário.

Mas os únicos movimentos em toda a mata eram as folhas balançando. Incomodado, correu os olhos em todas as direções, procurando o motivo daquele mau pressentimento. Enquanto examinava suas costas, um rufar de asas cortou os outros sons.

Deparou-se com uma coruja o observando, empoleirada num dos galhos retorcidos de uma árvore que já não tinha mais folhas. O animal o examinava com inteligentes olhos amarelos. Ele relaxou um pouco; pelo menos uma ave era uma ameaça menor do que um homem armado.

Mas a floresta costumava pregar peças.

― Roubou essa moeda, cavaleiro? ― Perguntou a ave.

O homem recuou alguns passos, atônito, fitando a coruja.

― Alucino ou algum elfo está brincando comigo? Achava que eles não viviam por aqui.

― Não há elfos aqui ― Disse-lhe a coruja ― Apenas eu, você, as árvores, e os corvos. Roubou essa moeda?

Realmente, a moeda fora roubada, mas quando ele ainda não passava de um garoto. Era bonita, maior do que moedas comuns, com dragão esculpido de um lado, e um corvo do outro. Ambos tinham pequenos olhos de pedra verde. Arrancara ela de um corpo já frio, com uma flecha enfiada nas costelas. Não conseguia se lembrar do rosto do morto. A moeda era seu amuleto de sorte desde então.

― Roubou de um morto, mas ninguém julgou seu crime. Porém, os corvos gostam de ouro.― Os olhos da coruja pareciam enxergar além de seu corpo. ― Os corvos vingam os que já se foram.

Ele sacou a adaga e deu um passo a frente. O animal alertou-lhe:

― Volte agora, enterre-a, e jamais torne a roubar um morto. Siga em frente e afronte as asas negras.

O dia se esvanecia, e o laranja começava a dar lugar a sombras. A coruja soltou um grito estridente e desapareceu num agitar de asas quando o homem continuou a avançar. Centenas de aves negras levantaram voo e crocitaram numa sinfonia agourenta. Ele pôs-se a correr, espalhando folhas, pulando um tronco apodrecido, tão veloz quanto seus pés permitiam, mas os corvos continuavam a rodeá-lo por todos os lados.

Correu, e a noite se aproximou, lançando um véu escuro sobre os pinheiros. Olhos amarelos o obervavam de longe, silenciosos. Correu, e as aves o perseguiram a cada passo, mergulhando e beliscando sua pele. Correu e agitou sua adaga em vão, até que seu fôlego praticamente acabasse. Então o chão sob seus pés desapareceu, e ele começou a cair, sem mais nada conseguir enxergar.

A moeda escapou-lhe dos dedos, e os corvos gritaram em triunfo.

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