"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas...Continuarei a escrever" - Clarisse Lispector

terça-feira, 24 de abril de 2012

O prédio




Parece rachada, porta esfolada,
Palavras em vermelho rabiscadas.
Reina a penumbra, frio de tumba,
Mas não temas que esta estrutura sucumba.

Esta é tua terra, esta é tua sina,
O bloco de concreto onde tu habitas.
É frio, e por garras marcado,
Repousa aqui teu sonho inacabado.

Se deseja luz, trate de sumir,
Se quer mais tempo, não há mais como fugir.
Abandone a esperança de um olhar casto,
Agora tu és teu próprio carrasco.

Cruze os braços, controle a euforia.
O velho esfarrapado será tua companhia.
Tu, resto de pó, espelho trincado de agonia,
Bem vindo à tua nova e eterna moradia.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O ouro agrada aos corvos




A luz alaranjada do entardecer tingia os tons de cobre da floresta. Ainda a pouco chovera, uma garoa fina e gelada, e as folhas estavam cobertas por gotículas brilhantes. O ar cheirava a orvalho, terra e decomposição.

Seus passos amassavam as folhas que se entregavam ao outono, produzindo um leve ressoar. Uma moeda de ouro girava em seus dedos, passando do indicador para o médio, de volta ao polegar, e às vezes jogada para cima para logo depois ser recuperada pela mão longa. Ele nunca a deixava cair.

O vento balançou seus longos cachos castanhos, e um arrepio percorreu-lhe a nuca. Percebeu que havia algo errado, e levou automaticamente a mão à adaga presa à cintura. Era uma arma extraordinária; cabo de madeira com entalhes tribais, lâmina fina e esguia, prateada, afiada e letal em ambos os lados. Sempre o protegera quando fora necessário.

Mas os únicos movimentos em toda a mata eram as folhas balançando. Incomodado, correu os olhos em todas as direções, procurando o motivo daquele mau pressentimento. Enquanto examinava suas costas, um rufar de asas cortou os outros sons.

Deparou-se com uma coruja o observando, empoleirada num dos galhos retorcidos de uma árvore que já não tinha mais folhas. O animal o examinava com inteligentes olhos amarelos. Ele relaxou um pouco; pelo menos uma ave era uma ameaça menor do que um homem armado.

Mas a floresta costumava pregar peças.

― Roubou essa moeda, cavaleiro? ― Perguntou a ave.

O homem recuou alguns passos, atônito, fitando a coruja.

― Alucino ou algum elfo está brincando comigo? Achava que eles não viviam por aqui.

― Não há elfos aqui ― Disse-lhe a coruja ― Apenas eu, você, as árvores, e os corvos. Roubou essa moeda?

Realmente, a moeda fora roubada, mas quando ele ainda não passava de um garoto. Era bonita, maior do que moedas comuns, com dragão esculpido de um lado, e um corvo do outro. Ambos tinham pequenos olhos de pedra verde. Arrancara ela de um corpo já frio, com uma flecha enfiada nas costelas. Não conseguia se lembrar do rosto do morto. A moeda era seu amuleto de sorte desde então.

― Roubou de um morto, mas ninguém julgou seu crime. Porém, os corvos gostam de ouro.― Os olhos da coruja pareciam enxergar além de seu corpo. ― Os corvos vingam os que já se foram.

Ele sacou a adaga e deu um passo a frente. O animal alertou-lhe:

― Volte agora, enterre-a, e jamais torne a roubar um morto. Siga em frente e afronte as asas negras.

O dia se esvanecia, e o laranja começava a dar lugar a sombras. A coruja soltou um grito estridente e desapareceu num agitar de asas quando o homem continuou a avançar. Centenas de aves negras levantaram voo e crocitaram numa sinfonia agourenta. Ele pôs-se a correr, espalhando folhas, pulando um tronco apodrecido, tão veloz quanto seus pés permitiam, mas os corvos continuavam a rodeá-lo por todos os lados.

Correu, e a noite se aproximou, lançando um véu escuro sobre os pinheiros. Olhos amarelos o obervavam de longe, silenciosos. Correu, e as aves o perseguiram a cada passo, mergulhando e beliscando sua pele. Correu e agitou sua adaga em vão, até que seu fôlego praticamente acabasse. Então o chão sob seus pés desapareceu, e ele começou a cair, sem mais nada conseguir enxergar.

A moeda escapou-lhe dos dedos, e os corvos gritaram em triunfo.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Palavras perdidas



Às vezes, desaparece a palavra,
Às vezes, a criatividade é negada,
E até permito-me cair no ócio,
Para questionar se realmente os possuo
O dom, a arte, a escrita.

Letras, onde se escondem?
Histórias, onde habitam?
Fadas, por que me evitam?
Sonhos, por que se desfazem?

Se falo, se penso, e me encanto
Se sinto, se cheiro, e me engasgo
Se encaro, se observo, e detesto
Se vivo, e percebo, um trasgo!

No verde, no nojo, no sujo
No claro, no Belo, no mundo
Na vida, na morte e na harmonia
Onde está a minha poesia?

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Bons livros





Eu sei por que as pessoas lêem. É para fugir de seus mundos, das tristezas, das angústias, da solidão. Esquecer da realidade miserável e provar da ficção doce, quente e aconchegante; esquecer da rotina bruta e participar de viagens empolgantes; esquecer do vazio no amor e apaixonar-se por personagens que, apesar de não serem reais, tornam-se vivos a partir do momento em que os acolhemos.

Também servem para isso os filmes, jogos e programas de TV, mas não tão bem como um bom livro. Não, nada se compara a ter em mãos um bom livro, abri-lo, sentir a textura das folhas de papel, seu cheiro, e devorar as palavras lentamente, deliciando-se com cada pequena frase e passagem, cada construção diferenciada e imagem descrita. Um bom livro é feito para ler-se numa manhã fresca, numa tarde de ócio ou numa madrugada chuvosa, encostado nos travesseiros com apenas um fiapo de luz da cabeceira da cama, até o sono chegar e aninhar-se em seus olhos, que aos poucos vão fechando enquanto você luta para terminar mais um capítulo, e por fim vencem seus esforços. Então, ao adormecer, você sonha com os personagens, com seus novos amigos, e com um mundo melhor.